O tom crítico que muitas vezes adoto nesta coluna, incluindo as críticas ao novo empreendimento vertical da cidade, não são em vão. Para mim, construção é um assunto muito sério. Não apenas pelo conforto da família que irá habitá-la, ou pelos riscos envolvidos em uma obra. Não. Tudo isso é secundário. A primeira diretriz de um projeto de arquitetura bem-intencionado deve ser o contexto (sócio-físico-cultural) em que será inserido. Um projeto que atende bem a uma metrópole não é o mesmo que atenderá a uma cidade de 50 mil habitantes. E o legado de uma edificação bem ou mal planejada e bem ou mal-intencionada é muito longo: nossas construções são calculadas para terem uma vida útil de ao menos 50 anos.
Em 2020 faleceu um arquiteto brilhante, menos conhecido do que merecia, mas não menos aclamado pela crítica especializada. Severiano Porto, mais uma vítima do insistente vírus que nos assola, nos deixou aos 90 anos. Seu legado seguirá vivo, como ótimo exemplo de atenção ao local de inserção e à população que viria a construí-lo e disfrutar da arquitetura esboçada nas pranchetas. Mineiro de nascimento e carioca de criação, foi no Amazonas que pode demonstrar todo potencial de seu talento.
Se hoje construir em locais remotos ainda é uma dificuldade, imagine dos anos 1960 aos 1980, período em que se realizaram as mais relevantes obras de sua carreira. Ciente disso e graduado sobre a égide do movimento modernista, Severiano soube sabiamente converter os conhecimentos adquiridos na mais antiga universidade de arquitetura do país ao clima e condições amazônicos. A mão de obra local não tinha nem o conhecimento, nem a disponibilidade de materiais para construir conforme os moldes modernistas do Sudeste. Na ausência do concreto abundante, elegeu a madeira como principal elemento estrutural de seus projetos no Norte. Em adição a ele, materiais naturais locais como palha e cerâmica também foram amplamente utilizados. O resultado são construções gentis com o entorno, de estilo único, classificados tardiamente de Regionalismo Crítico.
O clima amazônico, severo pelo calor, umidade e chuva, fez com que Porto elegesse soluções e materiais simples em sua essência, mas geniais na aplicação. As paredes de tijolos permitiam ambientes mais frescos, os longos beirais mantinham as chuvas afastadas, elementos vazados e varandas ofereciam sombra sem comprometer a ventilação natural. E tudo isso trabalhando dentro de um orçamento racionalizado.
Me frustra muito saber que apesar de todo o conhecimento que temos à disposição – fruto dos arquitetos e urbanistas que nos precederam – Santa Cruz tenha um plano diretor municipal tão falho, que permite anormalidades como indústrias em franca expansão lado a lado de novos loteamentos residenciais e edifícios verticais sendo lançados com um marketing enganoso em uma cidade que não está preparada para recebê-los. Sei que vivemos em um mundo capitalista e que o objetivo da construtora por trás do empreendimento é unicamente o lucro. Mas o lucro ainda seria possível – e mais honesto – se estivesse acompanhado de um projeto pensado para cidade e seus habitantes. Os de hoje e os que ainda estarão aqui daqui a 50 anos.
Artigo escrito por Franco Catalano para o jornal Debate de Santa Cruz do Rio Pardo
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